Friday, 10 July 2015

Das revoluções e da areia

Sob as pedras da calçada está a praia, mas não nos devíamos esquecer que a praia é sobretudo areia, e para a areia volta o imperial César e o Yorick, e nós com eles. Atrás da política estão pessoas. E nesta semana não concordei nada com quem achou que a mulher do PM se exibiu em público, a si e à sua doença, para obter ganhos políticos. Na verdade, achei a atitude dela inspiradora. Da mesma areia por trás das pedras da calçada com as quais se fazem revoluções. E não é por ser de esquerda que acho que a malta de direita não é da mesma areia que eu. É por ser de esquerda que o sei.

Por mais que o novo acordo grego me desiluda, não consigo deixar de ter uma enorme compaixão pelo Tsipras. E pensar nas noites em que aquele homem, errático e volúvel, não dorme, aterrorizado com a necessidade de aceitar que tem de tomar decisão que, sendo inevitável, pode ser tão dramática no curto prazo. As referências acima ao Hamlet não são acidentais. Um Primeiro Ministro que estaria disposto a fazer tudo, menos a única coisa que terá de acabar por fazer. 

Thursday, 27 November 2014

Sócrates


Uma empresa fictícia, criada por dois artistas russos nos anos 80, dedicava-se à compra e venda de almas. Está certo. Quem tem uma alma e não precisa dela, vende; quem não tem e quer ter, compra.
 
A certa altura, a empresa faliu: não porque se tivesse tornado difícil encontrar almas para a venda, mas porque deixou de haver quem estivesse interessado em comprá-las. Aquelas pessoas que não têm uma alma, ou têm mas querem mais do que uma, deixaram de se preocupar. De modo que terá havido para ali gente a querer vender a sua, e ninguém a queria comprar. Imagino as almas para ali expostas, numa espécie de mercado decadente, à espera, a decomporem-se, a cheirarem mal, enquanto os vendedores aguardavam, cada vez mais impacientes, que os desalmados se apercebessem da sua condição, e se voltassem a preocupar. É a verdade. Bom, a verdade de uma empresa fictícia, criada por artistas. Soube disto através da nova coleção da Saatchi.  
 
Sócrates. É possível que seja culpado, que seja inocente. Que raiva destes tempos que tornam necessário dizer banalidades destas. A maioria de nós não sabe absolutamente nada sobre o caso. Mas não tem faltado quem se prontifique a assegurar que, como é evidente, ele é culpado. Mário Soares, ontem, fez o papel inverso. Com graça, os primeiros atacaram-no prontamente, falhando em perceber que, na realidade, todos eles têm o mesmo pensamento mágico, baseado em ignorância, cheio de vontade de estar certo.
 
Esta fúria toda, para mim, só se explica pela vontade de condenar Sócrates por tudo o que ele fez. Liberais que estão disponíveis para defender que o facto de magistrados ou polícias, gente do poder coercivo do estado, em anonimato, revelarem informação escolhida e privada sobre um indivíduo, é uma mera formalidade. Jornalistas chatos, como tantos em Portugal, dispostos a deixar, pela primeira vez, de usar o condicional e o "alegadamente". Todos estão disponíveis para deixar passar uma, só desta vez, e tudo na enternecedora ilusão de que, se Sócrates for culpado disto, então é culpado de tudo. E a gente sabe bem o que é o tudo, não é? Em tempos em que a política de austeridade, que teria de funcionar (ou então se calhar o que pensamos sobre a natureza da economia e da função salvífica dos mercados e do privado não computa), condena o país, e até mesmo a sua elite económica, a uma pobreza e uma subserviência de décadas. Em tempos em que um governo de direita vende o direito à portugalidade por quinhentos mil euros. Em tempos em que um governo de gente das empresas, que veio para ginasticar um estado mandrião, pô-lo na ordem, perde o rasto dos processos judiciais e não consegue distribuir professores por escolas (you had one job...). Nestes tempos, dá  muito jeitinho que Sócrates seja mesmo culpado de tudo. A ilusão desta gente, que é mesmo entercenedora, é a de que, espalhando achas pelo país todo, só vão queimar o Sócrates. Que desprezando as regras do estado de direito (mas só desta vez), já de si tão frágil, só vão dar dar cabo do Sócrates.

Só espero que a vontade de alguns em condenar Sócrates por tudo não seja compensada pela vontade de outros de o defender de tudo. Que há gente que quer vender a alma, é evidente. Que não haja então quem a queira comprar. Se Sócrates for culpado, tem de ser condenado, rápida e exemplarmente. Alas, nada disso me calará quanto às coisas certas dos governos que ele liderou.

Sunday, 9 November 2014

Sérios

Ia dizer algo mais ou menos assim, mas depois perdi o vagar. Nestas coisas, não me incomoda nada estar ao lado de gente tão reacionária. Acho mesmo que o problema do nosso país é não perceber que só nos vão levar a sério no dia em que nos deixarmos de levar tão a sério. Ter havido tanta discussão sobre a rábula do ministro Pires é embaraçante. É do mesmo tipo de minúscula pequenez que nos faz tratar uns aos outros por doutor ou achar que boa escola é uma escola com exames na quarta classe, em que a malta chumbe mesmo. Somos um país de formalistas bacocos, uma espécie de ditadura da literalidade, com bispos e pastores que se encarregam de garantir a mais fria aplicação de uma estupidez exemplarmente séria, cujas regras são tão estúpidas que só permitem a sobrevivência dos estúpidos.

Monday, 29 September 2014

Poder sem controlo

Está a passar uma série em que, em cada episódio, um ator americano fala da sua peça preferida de Shakespeare. Que surpresa, que rasgo, a Kim Catrall escolheu António e Cleopatra. Já ia mudar de canal quando vi o Alastair Campbell (o antigo jornalista de tablóides que escrevia os discursos do Blair e que é conhecido por ser um patife) a dizer que o discurso de António (no Júlio César) tem uma má reputação que não merece. O problema, diz ele, é que as pessoas vêem a manipulação como uma coisa má, mas realmente o que o político está a fazer é uma perfomance, e o público é parte dessa perfomance. São tão atores como o político. Não deixa de ser uma ideia extraordinária e intrigante. Político e público são atores e tomam os seus lugares numa perfomance em que todos têm poder e que nenhum controla. Poder sem controlo podia ser um bom título para o António e Cleopatra. E para os desenvolvimentos recentes na política portuguesa. Vamos ver.

Tuesday, 12 August 2014

Representação

Não sou fã do Robbin Williams. Nem sequer sou fã do clube dos poetas mortos. A morte dele, no entanto, fez-me ler uma entrevista de há três anos que o Guardian hoje publica novamente. O entrevistador viu tudo menos o mais evidente: que o homem estava deprimido. Tudo isto é bastante triste e irónico. Estamos perante um homem que era tão bem sucedido enquanto ator que já não conseguia representar credivelmente a realidade: o ator era mais importante que o homem, e escondia-o. É, aliás, curioso que hoje haja tantos posts no facebook que dizem "o captain my captain" - os posts alusivos à morte do homem destinam-se à personagem e não ao homem. 

Macbeth disse, quando soube da morte da mulher, que life's but a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon the stage and then is heard no more. Estamos perante um homem e um ator que strutted and fretted his hour upon the stage a tal ponto que, mesmo ainda vivo, he was already heard no more. 

Saturday, 28 June 2014

Vampyre - a tale

1816 foi conhecido como um ano sem Verão. Uma série de anormalidades metereológicas privou a Europa e uma boa parte da América de um Verão propriamente dito - parece que chegou mesmo a nevar a Junho, e a temperatura andava pouco positiva. 

Lord Byron passava férias numa casa arrendada junto do lago de Genebra. O mau tempo em Junho impedia o passeio rotineiro e solitário de barco até a uma pequena cidade cantã nas margens do lago, onde se abastecia de tabacos e álcool. Acompanhava-o neste não-Verão o seu médico, um rapaz de dezanove anos, filho de italiano refugiado em Londres. É, pelo menos, assim que as biografias de Byron se parecem referir a John Polidori: o seu physician.

Porventura sem saber o que fazer com tanta saúde, resolveu convidar três amigos para passar uns dias na casa do lago de Genebra: a Mary Shelley, aquele que viria a ser o marido de Mary, Percy, e Claire Clairmont, meia irmã de Mary, e que viria a ser mãe de uma filha de Lord Byron. Numa noite fria, e depois de lerem à vez poemas do sublime e do sobrenatural, Byron propõe um concurso. Cada um deles escreveria uma história de fantasmas, que seriam depois lidas e votadas pelos convivas. Recolheram-se durante a noite e, ao serão do dia seguinte, cada um tinha uma história a apresentar - bom, Byron nem por isso, porque rapidamente desistiu de um fragmento que não achou próprio para a contenda. Mary Shelley tinha escrito a história que ficaria conhecida como o Frankenstein. O marido não sei bem o que escreveu, e também não sei o que terá escrito a meia irmã. O italiano de dezanove anos escreveu um conto chamado Vampyre. Byron ouviu o médico Polidori ler o primeiro conto que alguma vez foi escrito sobre um lorde inglês que na verdade é um vampiro, um homem mal-morto, de dentes afiados, que suga a juventude e a beleza dos comunais, e riu. Mas riu tanto que Polidori, ofendido, resolveu recolher à terra do pai, algures no norte da Itália, onde ainda passou uns anos. Ao regressar a Londres, apercebe-se que alguém teria publicado a sua história de horror, o Vampyre, numa revista. Mas o que mais o surpreendeu é que o nome do autor era Lord Byron. 

Quer Lord Byron quer Polidori desdobraram-se, certo que por motivos diferentes, em desmentidos, mas ninguém parecia acreditar que um médico fosse escrever histórias de mal-mortos. Em grande desgosto - e, certamente, entregue à ironia de ser um autor que não é mais autor do que personagem do seu próprio livro -, matou-se na casa onde nasceu. No soho, em Londres. 

Sunday, 25 May 2014

UKIP

Escrevi este post há uns dias e acabei por não o publicar - mas, agora que estamos perto de saber os resultados das eleições europeias, o tema do post volta a ganhar interesse: se um partido fascista ganha eleições, o que é suposto os partidos mainstream fazerem? Incorporar os "anseios" dos eleitores, quando estes anseios são racistas, perigosos, ilegais? Toda a filosofia do "incorporar anseios" pouco mais faz do que tentar legitimar a ideia de que os partidos políticos em democracia servem para dar às pessoas o que elas querem. Isto está, no entanto, nos antípodas da forma como eu vejo a democracia. Os partidos não devem interpretar a vontade do povo e dar-lhes o que eles querem; devem propor ideias e lutar por elas, convencendo as pessoas. Ou morrer a tentar.

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O Nigel Farage - o líder do UKIP, o partido britânico que faz do abandono da UE a sua questão política mais moderada - foi atropelado numa entrevista de rádio. A coisa foi de tal ordem que o assessor de imprensa teve de vir em socorro do líder e interromper a entrevista. Eu não sou um fã deste tipo de jornalismo agressivo. Este tipo de exercício em hiperventilação, em que não se dá tempo para responder, não me parece muito eficaz. Primeiro porque, já se sabe, martiriza a vítima. Depois porque tenho dúvidas que possa ter algum efeito benéfico a longo prazo. O que é o melhor que pode acontecer? Uma redução no número de votos do UKIP, sim. Nesse caso, será um alívio - mas não uma vitória. Será uma espécie de "desta safámo-nos, mas para a próxima pode ser mais difícil". Esta luta constante contra pessoas e não contra ideias, nos seus momentos de alívio, costuma fortalecer ensinamentos como os que nos dizem que "ou os partidos mainstream sabem interpretar a vontade do povo, e absorvem as suas inquietações, ou estes partidos extremistas ganham". A consequência é uma absorção crescente da agenda dos partidos extremistas na prática política dos outros partidos, coisa que, aliás, já tem acontecido. O libdem diz nos tempos de antena que se sente o único partido que apoia a permanência na UE (e fá-lo com o slogan "stand tall in the world by standing tall in our backyard"). Os conservadores conseguiram afastar os búlgaros e os romenos durante anos. O Milliband não tem espaço político para afirmar que Farange é racista.
O meu ponto, afinal, é tão só que as entrevistas agressivas não devem ser feitas ao Nigel Farange, mas a uma parte do povo britânico. Pergunte-se ao homem da rua como é que ele acha mesmo que esta história de uma inglaterra para ingleses acaba. E também se pergunte se ele sabe como é que a economia britânica conseque inflação tão baixa, apesar de a banca de investimento continuar a dar prémios de milhões de libras em barda e apesar de os milionários do mundo todo continuarem a comprar propriedade à maluca. Ou isso, ou aparecerão sempre novos - e velhos - Nigel Farages.

Thursday, 24 April 2014

Thinking makes it so

O meu local de trabalho tem uma coisa bem engraçada. Tem escrita num pilar, numa sala de reuniões, a resposta de Hamlet quando o amigo Rosencranz lhe diz que não acha nada que a Dinamarca seja assim tão pouco livre: olha, meu caro, de facto é só quando pensamos que as coisas se tornam boas ou más. É só quando temos consciência da liberdade que podemos chamar a um quarto prisão. Bom 25 de abril. 

Wednesday, 5 March 2014

CRP


"Constituem poderes dos Deputados: 

(...) 

d) Fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública e obter resposta em prazo razoável, salvo o disposto na lei em matéria de segredo de Estado"

A menos que a natureza das aldrabices do PM seja matéria de segredo de Estado, este Governo, parece-me, voltou a cometer uma ilegalidade. Não está mal. Já vamos em quantas, assim de memória?

PS: Vídeo aqui. Aquelas palmas dos deputados do PSD dizem exatamente o quê sobre a maneira como eles se vêem a si mesmos e às suas funções? 

Friday, 14 February 2014

Dia de namorados

Há algo de insuperavelmente incompleto na perfeição. Está aquém. Não tem pontas, não pica, não espeta, não arrisca, não vai além e, por isso, não surpreende. E a gente esquece o que não surpreende. As coisas perfeitas, aliás, são a cópia da nossa própria imaginação - são na melhor das hipóteses aquilo que imaginamos. A imaginação, sendo nossa, é coisa muito aborrecida. É o que não imaginamos que nos apaixona. De outra maneira, estamos a apaixonar-nos por uma parte de nós. E crescer, o processo a que estamos mais ou menos condenados, é deixarmos de nos apaixonarmos por nós mesmos.

É por isso que gosto tanto deste poema do Yeats. Para mim, na minha leitura diletante, é o maior elogio à imperfeição.

Had I the heavens’ embroidered cloths, 
Enwrought with golden and silver light, 
The blue and the dim and the dark cloths 
Of night and light and the half light, 
I would spread the cloths under your feet: 
But I, being poor, have only my dreams; 
I have spread my dreams under your feet; 
Tread softly because you tread on my dreams.

Se fosse vestido com a perfeição, com todo o céu estrelado, completo e escuro, se andasse com ele às minhas costas, a cobrir-me, eu estendia-o para que passasses por cima; mas não, eu, que sou pobre - sou pobre de graça -, tenho sonhos, aquilo que nem controlo, aquilo que é só meu, que só eu vejo, que não faço, e nem sei o que é. Aquilo que sobra à minha imperfeição porque nem é aquilo que sou. Estendo os sonhos no chão, e peço apenas que os pises devagarinho porque são os meus sonhos. É aquilo que não sou, mas é o melhor daquilo que deixei de ser. É o que sobrará na tua ideia: a minha imperfeição, os meus sonhos, que são maiores que a tua imaginação. 

Feliz dia de S. Valentim ao mundo, a partir de Londres. Que não é a cidade de Yeats. 

Tuesday, 4 February 2014

O véu

O teste do véu da ignorância de Rawls é, a meu ver, necessário, ainda que não suficiente, para legislar com justiça. Afinal, faz sentido um grupo fazer leis para os outros que o próprio grupo não gostaria de cumprir? E é isso que sugiro para o caso das tão faladas praxes: se os duxs aceitarem ser praxados pelos caloiros, então eu acho que as praxes não merecem legislação. Que tal? Parece-vos bem? É integrador e tal? 

A ideia é mais ou menos esta:

Thursday, 9 January 2014

einmal ist keinmal


O Kundera, na insustentável leveza, diz que há um provérbio alemão que significa "uma vez não conta", ou "uma vez é nunca". Aquilo que só fizemos uma vez, a primeira e última vez que fazemos alguma coisa, é um não-lugar, é uma Utopia. É um sítio ao qual nunca regressaremos, uma ilha isolada, protegida, a salvo de tudo exceto da nossa memória. E a nossa memória invade essa ilha, invade o sítio onde não voltamos, habita-o, coloniza-o, controla-o, aperfeiço-o, cobre-lhe as sombras. Os outros espaços, os espaços a que voltamos, serão sempre, ironicamente, esboços imperfeitos, sítios inacabados, sítios que a nossa memória não pode mexer, melhorar, sítios piores.
 
A partir de março, volto a Londres. Volto ao sítio onde vivi durante vários anos e de onde voltei há seis. Vou desafiar a minha memória a viver no mesmo sítio que eu. Recebi uma proposta profissional que estará próxima do irrecusável. Deixo um organismo público português para um organismo público inglês. A ironia de passar de um organismo público português para um inglês não é aparente. É uma caricatura do tempo histórico que atravessamos.

Mas vou feliz, e voltarei.